O ativismo complementa a clínica: a reflexão de M. Joana Almeida

O ativismo complementa a clínica: a reflexão de M. Joana Almeida

A Associação Mundial de Saúde Sexual celebra o Dia Mundial da Saúde e Direitos Sexuais a 4 de Setembro. Os direitos sexuais incluem a igualdade, a condenação da violência sexual, o direito a uma educação sexual compreensiva; e a possibilidade de experiências satisfatórias, prazerosas e seguras; entre outros direitos. Ao longo dos meus anos como psicóloga fui fazendo um percurso paralelo e complementar entre a prática clínica e o activismo, que me leva a ler estes direitos sexuais em várias camadas e frentes de acção.

Em primeiro lugar e por formação clínica, a prática faz-me a conhecer pessoas no seu sofrimento, a ter curiosidade em partilhar o seu sofrimento e a canalizar o seu desenvolvimento para a procura e o crescimento. Por outro lado, o contexto, os meios sociais, e as culturas em que cada um de nós está inserido permitem ou dificultam as nossas vivências, o nosso bem-estar e a saúde sexual.

A ajuda terapêutica acompanha uma pessoa nas suas dificuldades sexuais, relacionais, pessoais  e tenho tido bastantes encontros motivados por pedidos relacionados com sofrimento, insatisfação sexual, de pessoas, casais ou redes íntimas, que não tiveram os seus direitos sexuais respeitados ou promovidos na sua essência.

Como pano de fundo e comum a muitos de nós há a falta de acesso a informação e conhecimentos sobre a sexualidade, a uma educação sexual compreensiva; tal como a serviços de saúde sexual disponíveis, acessíveis e de qualidade. A falta de conhecimentos sobre sexualidade, no geral, e sobre o prazer, no particular, não permite o desenvolvimento de competências sexuais – mas também relacionais – de descoberta pessoal e de vivência de experiências prazerosas, de exploração da sexualidade, de aceitação de si mesmo, com as suas qualidades e limitações, dos seus desejos, expectativas e projectos. Tal permite e potencia desigualdades e discriminações em função da orientação sexual e da identidade de género, dos papéis de género feminino e masculino rigidos, da pertença a minorias étnicas, ou de deficiências físicas ou mentais.

Na sexologia clínica tenho acompanhado especialmente pessoas da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, transgéneros e queer e, na Clínica do Diferenças, pessoas com perturbações neurodesenvolvimentais (jovens e jovens adultos); que partilham não terem os seus direitos sexuais respeitados e em igualdade; por dificuldades e discriminações em função da minoria a que pertencem.

Ao longo de uma terapia sexual muito se conversa e aprende sobre sexualidade, relações, corpo e auto-estima, prazer e saúde sexual. Também muito se procura sobre como ultrapassar, viver com as barreiras que as discriminações criam e mantêm, baseadas em estereótipos, preconceitos, problemas de saúde mental não só da sociedade mas também das famílias.

Assim há uma parte de mim que intervém no particular, com cada pessoa na sua individualidade, possibilidades e riscos. No entanto o contexto, o meio social e cultural em que vivemos impõem a cada indivíduo oportunidades e ameaças em atingir o seu bem-estar, a sua saúde e a saúde sexual. O empenho no activismo complementa a realização dos direitos sexuais neste nível mais global, social. O ser humano consegue adaptar-se às condições mais adversas, criar soluções para as situações sociais, familiares, relacionais mais difíceis – enquanto ser sexual – mas a influência e o peso da sua cultura, da sociedade em que está inserido é fundamental. O activismo complementa a clínica. A mudança social acompanha a mudança pessoal, particular.

Existem as evidentes diferenças de se nascer e crescer em meios rurais e urbanos, no interior ou no litoral de Portugal; como também as distantes disparidades entre o hemisfério Norte e Sul, entre continentes, entre viver a nossa sexualidade no sul ou no norte da Europa.

Comecei o meu envolvimento no trabalho de defesa dos direitos sexuais quando em Portugal a interrupção voluntária da gravidez ainda podia ser feita por escolha da mulher. Aprendi com a Associação para o Planeamento da Família e com a IPPF (International Planned Parenthood Federation) como a educação sexual poderia ser; com os Médicos pela Escolha aprendi como se debatia a IVG em campanha de referendo; com a rede de jovens YouAct como ser activista em desenvolvimento e cooperação nos níveis internacionais, principalmente europeu. Com o GAT (Grupo de Activistas sobre Tratamentos para o VIH) trabalhei lado a lado com pessoas que vivem com o VIH, percebendo que a participação e o envolvimento das populações-alvo, das minorias, das pessoas que vivem com uma doença muda e melhora as intervenções que instituições ou profissionais possam pensar para elas. Também se tratam de direitos sexuais: o de reunir, participar na vida pública e política e a liberdade de expressão nas questões sexuais. Com a Associação ILGA Portugal vi mudar a lei do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a lei da identidade de género, a da adopção por pessoas LGBT.

Em poucos (ou tantos) anos as mudanças legais e políticas foram grandes e difíceis de alcançar, foram resultados do trabalho de equipas, das comunidades de activistas em direitos sexuais, carregados de visões, de paixões e raivas (mais que de financiamentos sustentáveis) – mudanças essas que trouxeram com elas inevitáveis mudanças também sociais, também nas relações e no acesso ao prazer de cada pessoa, de cada ser.

Quando faço a Marcha do Orgulho LGBT de Lisboa penso neste ponto de junção entre a clínica e o activismo. Ali, a reclamar as ruas de Lisboa, ao lado de tantos activistas pelos direitos sexuais, penso nos que têm medo de sair à rua por ser uma pessoa LGBT, nas agressões que afastam do espaço público e violentam algumas minorias, nas feridas que se tentam sarar e demoram, daqueles que procuram ou precisam de ajuda clínica e de terapia sexual. O activismo complementa a clínica. A prática clínica completa o activismo sobre os direitos sexuais.

 

 

M. Joana Almeida

Psicóloga Clínica e terapeuta sexual

Tesoureira da Direcção SPSC

 

Psicóloga Clínica, vertente cognitivo-comportamental pela Faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra (2003). Mestre em Sexologia Clínica pela Universidade Lusófona (2012). Terapeuta Sexual acreditada pela Sociedade Portuguesa de Sexologia Clinica (2007). Desenvolve actividade clínica e formações em parceria com organizações não governamentais. Actividade clínica no Centro de Desenvolvimento Infantil – Diferenças, da Associação Portuguesa de Portadores de Trissomia 21, na Consulta de Sexualidade e perturbações neurodesenvolvimentais. Trabalha em intervenção em crise na empresa multinacional Workplaceoptions.

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