Helena Ales Pereira

“Ponto marido: É incrível que o corpo de uma mulher seja sujeito a esta prática”

Helena Ales Pereira

Na sequência do parto, Helena Ales Pereira foi submetida a uma intervenção médica que não pediu e que não consentiu. O direito à autonomia e integridade corporal é um direito sexual.

Leia o excerto do conto abaixo e oiça de seguida o seu testemunho.

“Passo vinte horas em trabalho. Quase arranco a mão do meu marido, gritando impropérios que não parecem escandalizar a enfermeira. (…). A Criaturinha nasce vinte minutos depois. Têm mesmo de me cortar, mas não na barriga, como eu temia. (…).
Levam o bebé para me poderem remendar no sítio onde me cortaram. Dão-me qualquer coisa que me deixa sonolenta, através de uma máscara suavemente encostada à minha boca e nariz. O meu marido brinca com o médico, enquanto me segura na mão.
– Quanto quer para dar o tal ponto adicional? – pergunta. – Oferecem essa possibilidade, certo?
– Por favor – digo-lhe. Mas as palavras saem-me arrastadas e deturpadas e provavelmente não passam de um mero gemido. Nenhum os dois via a cabeça para mim.
O médico solta um gargalhada.
– Não é o primeiro…
Escorrego por um túnel comprido e, depois, regresso à superfície, mas coberta por qualquer coisa pesada e escura, como petróleo. Sinto que vou vomitar.
– … dizem que fica tipo…
– … tipo vir-“

In Conto O Ponto de Marido, excerto do livro O Corpo Dela e Outras Partes, de Carmem Maria Machado (Alfaguara, Julho 2018)

 

Helena Ales Pereira nasceu em Lisboa há 48 anos. Depois de muitos anos dedicados ao jornalismo, é agora assessora de comunicação e marketing numa editora de livros e decidiu este ano cumprir um desejo antigo: fazer voluntariado na América do Sul. Depois de dois meses no Peru, onde deu aulas de inglês e anotou muitas histórias, ou não fosse a realidade deste país tão distante da europeia, acaba de partir para Cabo Verde, onde pretende continuar a alimentar a sua experiência como voluntária e a descobrir novas histórias.