Isabel Leite

Isabel Leite


Guerra declarada ao meu corpo, guerra aberta contra mim. Nunca abandono o
campo de batalha.


E os meus agressores não imaginavam o serviço que (me) prestavam…
Pequenita, nem sequer percebia o que estava a acontecer. Só achava estranho e esquisito.
Anos (e agressões outras) passados, comecei a perceber.

Recordo a primeira situação que sei hoje rimar com agressão. Tinha 8 anos.
Em casa dos meus progenitores vivia também uma outra criatura, um irmão do meu pai. Um dia, hora da sesta, a criatura deitara-se no quatro dos meus irmãos (eramos quatro, duas raparigas e dois rapazes). Eu, que também queria fazer a sestinha, deitei-me a seu lado. De repente, senti-me agarrada, o meu corpo apertado contra o dele. E senti um objecto duro, que hoje sei nomear, contra a minha barriga. Sem saber porquê, tive medo, sentia-me presa e ameaçada. Ainda hoje não sei como me libertei daquelas garras, sei apenas que consegui sair daquele quarto. Claro que não contei a ninguém. Nem sequer saberia como contar.

O tempo passou… Uma espécie de amnésia eliminou aqueles momentos. Uns anos mais tarde, tinha eu 14 anos, a amnésia abandonou-me e, sem como nem porquê, acordei um dia revivendo aquele dia. Comecei a comportar-me de forma diferente da que me conheciam. Como será evidente, o meu comportamento era incompreensível…e, diziam, inadmissível. A menina bem comportadinha desaparecia gradualmente. Esqueci como e quando aconteceu, mas, face à fortaleza de moralismo, hipocrisia e hostilidade em que era e de que era prisoneira, explodi. Explodi e disse qualquer coisa como isto:
“Pois, mas o tio…”. E contei. E descrevi. Nesse momento, primeira e única reacção:
“E porque é que não disseste nada?!”
Pergunta estúpida, prenha de hostilidade e culpabilização de mim. De qualquer forma, eu não saberia responder.

Nascida numa família católica praticante, frequentava a Catequese, era levada à missa (de cabecinha coberta por véu, como se impunha!), confessava-me para, pura e perdoada de pecados, receber o “Corpus Christi”. Quando da confissão, que pecados confessava eu?! Por vezes, inventava qualquer coisa, por vezes dizia a verdade, como, por exemplo, ter comido uns biscoitos às escondidas. “Pecados” confessados, o tal de representante do tal de Deus na Terra, ocupava-se do meu corpo passando as patas imundas na parte do meu corpo em que em mim, mulher nascida, haveriam de surgir mamas. Assim me absolvia dos meus pecados.
Como explicar e a quem o que aquele digno “representante de Deus na Terra” me fazia? E quem acreditaria?

Sei hoje por que motivo sabia não me ser possível contar o que me acontecia, muito menos explicar por que motivo me sentia mal (hoje, digo “agredida”).
Agredida e desprotegida que me sentia, procurei barreiras e construí trincheiras. Em todos os rapazes que de mim se aproximassem via aqueles dois. Desenvolvi aversão e nojo a quantos se me apresentassem sob a mesma forma, a forma de “macho”.
Foram-me necessários muitos, muitos anos para conseguir fazer a distinção entre “homem” e “macho”. Nesses anos, muito magoei, muito fui magoada, a muito passei ao lado, a muito deixei passar ao lado. Pessoas que amei, pessoas por quem fui amada foram-se.

Retirei da minha dor a força que me impele a jamais esquecer e a pôr a minha memória ao serviço de quantos vivem ainda hoje algo semelhante ao que vivi.
Por tudo isto, é meu mote:
“Guerra declarada ao meu corpo, guerra aberta contra mim. Nunca abandono o campo de batalha.”

 

Isabel Rosa Malato Leite, nascida em 1955, num território de nome Portugal, numa família católica praticante. Licenciada em Germânicas. Objectivo de vida: contribuir para um mundo melhor do que o que viveu.