Sandra Nobre
O prazo de validade.
Aos 39 anos, a maternidade não era algo que me tirasse o sono. Num exame de rotina, uma daquelas ecos que nos espreitam as entranhas, a médica confirmou a idade da ficha de inscrição.
– Sim, 39.
– Filhos?
– Não.
– Ainda não?
– Não!
– Olhe que o seu prazo de validade está a acabar.
F!&@?0#… Respirei fundo. Não fosse estar de pernas abertas, despida da cintura para baixo e tinha saído porta fora. Será que algures entre as minhas pernas vem inscrita uma data nalgum recanto que eu não tenha ângulo de visão? Quem é a profissional de saúde que faz um comentário destes a uma paciente de outra médica sobre a qual não sabe rigorosamente nada para além das informações pessoais da ficha de inscrição? E além disso, é do senso comum, até os iogurtes são mais duradouros que a data inscrita nas embalagens. Esperei pelo final do exame para devolver o comentário à médica na mesma proporção:
– E a doutora devia ser proibida de exercer, porque não sabe se quero, se posso, não sabe nada, nem tem o direito de fazer julgamentos ou observações destas.
Engoliu em seco, não estava à espera, e ficou na sala paralisada a olhar para mim enquanto eu vestia as calças.
– Acho que devia escrever isso no relatório do exame para eu não me esquecer.
Apeteceu-me chamar-lhe uns nomes, mas não o fiz. Não levasse eu a vida com uma certa leveza e teria assinalado na agenda o acontecimento. Para algumas mulheres que se inquietam com o passar dos anos e a possibilidade de terem filhos enquanto as amigas andam assolapadas entre as fraldas, a amamentação e as viroses dos seus dois, três, quatro filhos, a observação teria soado quase a uma certidão de óbito dos órgão reprodutores. Felizmente, sei que os meus estão de saúde e comportam-se como se tivessem 20… vá 30.
Investi na carreira o que podia ter gasto no seguro de saúde a contar com o parto, durmo pouco, viajei muito durante muitos anos, não tenho horários, posso até estar atrasada para ser mãe, mas levo um avanço em muitos outros departamentos da vida. E estou feliz assim. É uma obrigação sentirmos o relógio biológico? É isso que nos define como mulheres? Não uso relógio há muito, já passei os 40, não preencho as quotas do politicamente correcto da sociedade em nada, continuo sem filhos, mas como cantou a Aretha Franklin: “I’m every woman/ It’s all in me”.
Sandra Nobre é storyteller, fundadora e autora do projecto de livros personalizados Short Stories. Foi jornalista do Diário de Notícias e do Sol, colaborou, entre outros, com o DNA e o Guia Boa Cama Boa Mesa. Autora das biografias “Telmo Ferreira – Pés Alados” (2017) e “Odette Ferreira – Uma Luta, Uma Vida” (2014). Organiza os encontros de networking feminino Girls Just Wanna Have Fun.