Sílvia Baptista
O assédio verbal de rua não é sobre sexo, é sobre poder.
“Comia-te essa cona toda.” “Anda cá fazer-me um broche”. “Deixa-me esfregar-me nas tuas mamas.” Foi assim que, aos 12 anos, de mochila às costas, fui pela primeira vez assediada. Ia a caminho da escola, na rua de todos os dias, que ficou para sempre manchada pelo modo como alguém adulto me abordou sexualmente. Cheguei à aula de Geografia a tremer, a chorar e nunca mais tive sossego. Nos quatro anos que estive naquele colégio, as entradas e saídas eram acompanhadas de ansiedade e hipervigilância. Encontrei caminhos alternativos entre a paragem do autocarro e a escola, passei a ouvir música durante o percurso e nunca mais tive um passo certo e sereno. Aos 12 anos, ninguém tem capacidade para encaixar esta violência verbal. Já bastava o corpo que estava a mudar e todas as outras dúvidas que a pré-adolescência traz, dispensava-se o nojo de um adulto descontrolado.
Durante a vida este cenário repetiu-se várias vezes. A verbalização de intentos sexuais era a mais comum, mas também perdi a conta ao número de homens que se masturbavam no meio da rua, atrás de arbustos, entre carros, que me chamavam para que os visse. Imagens difíceis de apagar da memória, já de si fragilizada por histórias que me envolvem, sem vontade, na vontade sexual de outrem.
Como nunca falei disto, cresci com a noção de que a culpa era, de algum modo minha. Se não acontecia a mais ninguém, se era só eu a fiel depositária das intenções sexuais masculinas, então teria de ser eu, ou melhor, o meu corpo, o responsável. Com a passagem do tempo, e muita terapia, fui aprendendo a lidar com este tema, com as evidências e mazelas que ela me deixou na auto-estima, auto-imagem e no modo como me situou no mundo. A verdade é que precisei de anos para entender que a culpa não era, nem nunca será, minha. Que o meu corpo não tem nada de errado nem é responsável pelas atitudes dos outros, que posso sentir-me bonita sem que isso seja um convite ou uma incitação a algo que não pedi. Que o capital erótico, potencialmente roubado neste tipo de interações, é um direito que me assiste. Mas, tão importante quando tudo isto, entendi que o assédio verbal de rua não é sobre sexo, é sobre poder. Não é nenhum tipo de interação humana, não é uma tentativa de um homem falar com uma mulher, é, sim, uma violência de alguns homens sobre algumas mulheres.
Há uns meses, na rua onde trabalho, passei por um grupo de homens no passeio. Um deles, decidiu informar-me, em voz grossa, não fosse eu perder alguma ideia essencial, de tudo o que me faria caso eu quisesse ir com ele até ao carro. Vou poupar-vos o discurso, não pelo pudor do jargão mas pelo pudor da violência. Vamos apenas considerar os verbos “rasgar” e “enfiar” e um cabo de uma vassoura, que repousava, estrategicamente, penso eu, ao seu lado e do seu grupo de compinchas cúmplices. Ao ouvir o que me disse, mandei-o à merda. Estava cheia de raiva, senti que, se tivesse força e não tivesse medo, o desfazia ali mesmo. Quando me virei para seguir caminho, senti umas mãos no meu braço e um puxão que me levou ao chão. O senhor não tinha gostado do meu insulto. Vi a sua mão vir em direção à minha cara e, ao mesmo tempo, os companheiros a evitarem que tudo aquilo se tornasse ainda pior. Fiquei sentada no chão a chorar, envergonhada, com ele a ser consolado e acalmado. No final de tudo, ainda tive que ouvir “estas putas, provocam e depois não querem levar com ele.” E pronto. Tinha 12 anos outra vez.
Sílvia Baptista tem 43 anos. Licenciada em Comunicação Social e Cultural, trabalha em edição de livros, tem uma pós-graduação em Sexologia e prepara-se para começar uma especialização em psicoterapia psicanalítica. Acredita fervorosamente na importância de uma boa saúde mental e conta ter um papel ativo no fim do estigma associado às doenças deste foro.