Maria (nome fictício)


O fim do meu silêncio. Porque um abusador abusa sempre aonde quer que vá…

Depois de ter discutido o assunto com um grande amigo, vários pensamentos de prós e contras da escrita deste texto me foram atravessando a mente por um bom par de dias. O último, que não sei como categorizar, forçou-me definitivamente escrevê-lo.

 

Atualmente vejo o assédio sexual como aquelas doenças que sempre existiram, mas que apenas há pouco mais de uma década se conseguiram diagnosticar, combater e evitar. Em menina, tenho em mente vários episódios, que apenas agora entendo terem sido tentativas de abuso. Poderiam ter acabado mal, mas o acaso (nada mais que isso) reuniu vários fatores protetores.  

 

Toda a minha vida mudou divinalmente para melhor quando conheci o amor da minha vida e, passados dois anos de namoro, casei-me. Do mesmo modo tudo mudou quando, volvida pouco mais de uma década, o meu estado civil mudou novamente: enviuvei ficando entregue à minha sorte com dois filhos pequenos num país de onde sou oriunda, mas que não me viu crescer.  

 

A OMS reconhece que este vil “estatuto” deixa muitas mulheres vulneráveis a tradições abusivas (aconteceu comigo), a condições socio-económicas deploráveis que levam a que muitas mulheres sobrevivam a custa de prostituição ou de sexo transacional, a abusos aos seus direitos e ao ostracismo. Para além da eterna fama de portadora de má sorte e destruidora de lares que me poderá acompanhar, o que me marca mais tem sido a exposição ao abuso. Daí me vêm as histórias que, por ordem cronológica, vou agora partilhar:

 

“Chama-me quando quiseres…” 

 

No país onde vivo, a tribo a que a minha mãe pertence, “preconiza” que uma viúva jovem possa ser “assumida” por algum homem da família do falecido marido que a queira. O meu marido era oriundo desta tribo. Eu livrei-me desta sorte por ser considerada “moderninha e com muitas manias”, só iria dar trabalho. Uma semana depois do funeral, o tio mais velho perguntou quem me queria assumir, ninguém ousou. Depois de um ano de insultos e toda a sorte de tentativas de expropriação dos parcos bens deixados fui oficialmente “devolvida” à minha família. Desde a altura do enterro, alguns homens mais velhos foram “designados” para me apoiar.  

 

No ano subsequente nunca os vi, nunca ligaram, nunca perguntaram pelos meus filhos, na verdade, sendo eu alheia às tradições, eu própria não sabia o que esperar deles. Apoiar em quê? Estando psicologicamente muito frágil tinha apenas a força de pensar em não deixar que nada faltasse aos miúdos.

 

 Um dia ao chegar a casa reparei que no canteiro onde o meu marido jardinava para relaxar começaram a brotar uns pezinhos de uma planta que nunca lá estiveram: rosas de porcelana. A sério?  

 

Imediatamente a memória levou-me a uma tarde em que ele me disse ter posto ali uma surpresa para mim. Nem sabia que levavam tanto tempo a pegar. Ou pegaram e eu não vi. 

 

E eu que religiosamente regava o jardim já nem olhava para “quem” lá vivia. E decidi que já não fazia sentido nenhum estar ali. Aquela casa que tinha sido o paraíso de 4 era agora o inferno de 3. A luta para não a perder, as memórias, as árvores que plantámos e agora as rosas de porcelana, nada disso fazia sentido. Peguei nas crianças e enchi as malas que tínhamos e  naquele dia aceitei alugar o anexo da casa de uma família amiga no centro da cidade.

Naquela noite fiz 3 viagens de ida e volta e levei tudo o que coube na carrinha. Sobretudo roupa, um colchão, panelas, todo o material escolar e todos os documentos nossos. Levei igualmente a refeição pronta para aquela noite. E nunca mais voltei a entrar naquela casa…

 

O conteúdo foi repartido por familiares e a casa foi alugada ao desbarato dado o vandalismo a que a família do meu marido lhe infringiu. Assim que me mudei cumpri com o que me foi dito: chamei os “tios do apoio” para que soubessem onde eu estava.

 

Consensualmente escolherem um deles para me visitar. Como sempre, as crianças cumprimentaram o tio, fizeram 5 minutos de sala e foram brincar. Estando só com ele iniciámos uma conversa sobre a minha sobrevivência que me levou às lágrimas.

Em pouco tempo o tio prestou-se a abraçar-me e, entre o limpar de lágrimas, o toque íntimo dele e o meu grito não consigo honestamente explicar o que se passou ou como se passou. Sei que à saída me disse “chama-me quando quiseres”, “vou ajudar-te a passar por isso”. E, até hoje, tirando a minha mãe, ninguém na família entende “o porquê” de eu petrificar e retirar-me sempre que o vejo entrar em qualquer sítio. Francamente, uma pessoa que sempre se prestou a ajudar-me…  

                         

“Estás parva? E depois vivo de quê?” 

 

Uns meses depois de ter enviuvado fui admitida numa posição que aspirei durante pelo menos um par de anos. Um lugar de chefia numa organização de renome a nível  regional. Não poderia estar mais feliz. Pagavam bem, ia manter os miúdos no colégio. Seis meses depois estava tudo correndo bem, liberdade total, poder de decisão, excelentes progressos. Uma maravilha. Até ao dia em que o supervisor regional veio por uma semana para analisar os resultados. Quartinho num bom hotel próximo do escritório, preferências nutricionais acauteladas, equipa prontinha, documentos em dia, e ‘euzinha’ à sua espera no aeroporto.

 

 Os dois primeiros dias a trabalhar cerca de 16 horas, o que para mim era normal para aproveitarmos todo o tempo possível da semana. De qualquer modo não era difícil, ele era de muito bom trato e eu precisava de algumas orientações. Ao fim do segundo dia ela disse que me desculpasse de sua parte ao meu marido pelo tempo que ficava comigo a trabalhar. Eu descansei-o e disse “deixe lá” e vi o olhar dele a dirigir-se para o dedo onde eu tinha as duas alianças.  Ele perguntou-me: “Tens filhos?” Ao que eu respondi: “Dois e… nós temos de voltar a trabalhar”.  Assim fizemos por mais cerca de hora e meia.  

 

No dia seguinte, como combinado, eu passei pelo hotel para apanhá-lo no escritório. Naquele dia ouvi um “bom dia, já aí estás? Então sobe”. Ao que pensei, “enganou-se”, e deixei-me estar no “lobby” do hotel. Ao fim de cerca de 15 minutos desceu e não me disse nada. À hora do almoço elogiou o facto de eu ter pensado em tudo e perguntou se eu era “eficiente e rápida em tudo”. Achei a pergunta estranha e fingi não ter percebido.

 

Seguiram-se três dias de assédio verbal que foi escalando em intensidade. Tivemos a reunião com o resto da equipa antes da qual pedi, muito sem jeito, que fosse reservada a sala que era separada da seguinte por um vidro.

 À ultima hora fomos para outra sala e, assim sendo, no fim da reunião teria de ficar a sós com ele. Dei sinal à minha colega para esperar por mim lá fora. Não esperou. E o que se seguiu foi um jogo de gato e rato à volta da mesa e eu a sair esbaforida porta fora. Liguei para uma amiga minha que me aconselhou a reportar. Ao que eu respondi: “Estás parva? E depois vivo de quê?”.

 

Era 6ª feira, passei o fim-de-semana a pensar que se calhar tinha “mostrado demais os dentes”, teria facilitado. Sempre a meter-me em sarilhos. E agora? Na 2ª feira seguinte não fui trabalhar, fiquei doente. Quase duas semanas completamente asténica e sem forças. Mas fui recuperando. Estivemos cerca de mês e meio sem trocar emails.  Voltei a ter força e motivação e a pensar que provavelmente estaria a exagerar, pensei: “Ele nem me tocou nem nada, e não vive cá, basta ter cuidado quando cá vier”.

  

Assim que retomámos a comunicação notei o fim da cortesia habitual. Exigia trabalhos elaborados em tempos pouco realistas, relatórios complexos, nada do que fazia estava bem. Meses de sofrimento imenso. Cerca de seis meses depois do sucedido houve uma grande conferencia num país vizinho e toda a equipa foi, ele não se fez presente, mas foi a sua supervisora. Não me esqueço: o congresso foi magnifico e foi a primeira vez que saí para jantar fora depois de tudo o que me aconteceu. Foi muito bom. Curiosamente a grande chefe simpatizou comigo, tivemos uma pequena reunião, finda a qual me perguntou se havia algo que eu gostaria de partilhar com ela. Na minha cabeça só me vinha o “estás parva? E depois vivo de quê?”. Nada disse. 

 

 Voltei ao trabalho, o assédio piorou: teleconferências marcadas aos fins de semana ou a horas tardias, alguma violência verbal, um inferno. Nas minhas férias de Natal, quase a beirar a depressão, tomei a decisão de não mais me deixar abusar. Dois dias depois do Natal pedi uma teleconferência com a chefe e contei-lhe a história. Para meu espanto não acreditou em mim.

Contei repetidas vezes o que se passou. Pedi-lhe que investigasse entre os outros países que ele supervisionava pois geralmente estes casos não são únicos. Um abusador abusa aonde quer que vá. Disse-me que precisava de pensar. Eu avisei-a que uma vez tomada a decisão de lhe contar já estava pronta para tudo.  

 

Nada se passou nos dois meses seguintes. Naquela altura já estava à procura de outro emprego. Manda-me então o tal senhor, um email a dizer que nas duas semanas seguintes viajaria para avaliar o meu trabalho. Eu respondi que ele não reunia condições para me avaliar, no entanto, se tivesse mesmo de ser, ele não precisava de viajar, poderíamos fazer em videoconferência e eu gostaria de ter uma pessoa comigo na sala. Respondeu-me com a sua supervisora em cópia que não me cabia a mim escolher como ser avaliada. Eu respondi com copia à Diretora Executiva da organização que se se atrevesse a vir, ficaria certamente preso na alfândega porque no meu país uma queixa de uma viúva recebia muita atenção da polícia e autoridades (sonhar alto não custa). Não veio. Fui avaliada.

 

Atingi todos os meus objetivos e, em 3 meses, recebi uma excelente oferta de trabalho: iria gerir todo o programa das organizações que operam no sector. Passei  de supervisionada por ele a sua chefe. Quando me despedi, a grande chefe disse-me: “Pensei que fossemos amigas, vais deixar-nos agora”? Grande malandra.

Respondi do mesmo modo: “Também pensei que fossemos amigas”. Fiquei uma semana sem dar conta do salto. Depois de me ter sido criado um email começaram a chegar alguns da organização onde trabalhara antes. Pensei, voltei a pensar e li toda a política da organização sobre assédio sexual e vi com agrado que era de tolerância zero não apenas para os seus funcionários, mas igualmente para os seus parceiros. Era o que eu precisava. Pedi uma teleconferência com a ex-grande chefe. Assim que a mesma começou fui direta ao assunto: investiguem as outras regiões onde ele supervisiona o trabalho e despeça-o. Assim foi feito. Descobriram “algumas irregularidades”…

 

 Noutra teleconferência com a ex-grande chefe exigi que o despedisse. Comprovada a veracidade das outras acusações, não apenas foi despedido como lhe foi exigida a devolução de salários dos meses desde que foi reportada a primeira situação. Nunca mais soube do animal. Em todo o caso, difundi as leis sobre assédio sexual e todos os anos antes da submissão da avaliação os meus ex-colegas são obrigados a submeter comprovativo de treino online sobre o assédio sexual. 

 

“Tu só és assediada por seres atraente” 

 

Tendo tudo isto em mente sou uma grande apologista da informação e formação em como reconhecer, como se defender e como reportar o assédio. Já não posição atual foi-nos proposto um treino sobre assédio sexual e violência com base no género. Quando se perguntou quem queria o treino e eu levantei a mão, e algumas colegas minhas foram as primeiras a dizer: “Tu só és assediada por seres atraente”. Tolas! Fiz questão que se fizesse a formação porque pela 1ª vez partilhei a minha experiência com algumas pessoas.  

 

“Era assumido que “eu precisava”…”

 

A quarta situação marcante aconteceu dentro da minha própria família com o marido de uma tia. Conhecidos como família de muitas posses, eram pessoas com quem me encontrava esporadicamente e com quem sempre tive bom contacto.

Numa das poucas reuniões familiares em que nos encontrámos, troquei algumas palavras com o casal e com os filhos. Desde aquele dia passei a receber mensagens telefónicas dele com um forte conteúdo sexual.  Foi curioso para mim perceber que, de algum modo, era assumido que “eu precisava”…

Na verdade, pensar que muitas outras pessoas possam estar a passar por isto. Que por exemplo a minha filha poderia passar por isso. O que me leva a querer falar. O receio de ser identificada e passar por viúva histérica é grande também… para além de expor as pessoas com quem ainda trabalho, daí manter o anonimato.

 

Tenho muitas histórias sobre o modo como tenho sobrevivido aos longos destes anos, e se pelo nível do meu trabalho considero-me absolutamente privilegiada em relação à grande maioria de mulheres com quem partilho o estado civil, na medida em que nunca dependi do meu marido e pude manter o nosso sustento fazendo (grandes) ajustes.  

 

Mas sendo extremamente vulnerável houve coisas que tive de fazer para me proteger: tirei as duas alianças, não mudei sequer o estado civil do BI, mantenho a vida familiar selada e de cada vez que me perguntam pelo esposo (para quem não saiba) respondo que vai bem. Se me tornei extremamente defensiva, igualmente percebi que calar-me de cada vez que há assédio apenas favorece o agressor.  

 

Maria (nome fictício)